poema para ser lido na posse do presidente
Ando pela calçada da rua em que moro, em direção à Cobal, por exemplo, onde diariamente compro alguma coisa apenas para descansar um pouco do trabalho cotidiano que faço em casa, e, ao passar por uma pessoa, sou para ela o que ela é para mim: alguém que sobe ou desce uma rua, nada mais. Talvez, neste momento, eu seja também para mim e ela também para ela o que somos um para o outro: alguém que se esquece de onde está vindo e aonde está indo, de seu nome, de seu trabalho, alguém que sobe ou desce uma rua, nada mais. Ou algo mais, ou menos, não sei, que vai comendo o nome, o trabalho, o parentesco, as demandas que recaem sobre nós, largando-os pouco a pouco pelas latas de lixo penduradas nos postes, deixando-os cair ao meio-fio, por entre as rodas dos carros, cumprindo o destino comum de todos dejetos. Andando pelas calçadas, subindo-as ou descendo-as, indo ou voltando não importa para onde ou de onde, enquanto andamos, desta vez não temos um encontro marcado com nós mesmos. Mais persistentes ou mais ausentes, mais barulhentas ou silenciosas, diversas vidas vêm e vão em um só corpo, aparecendo sempre alguma quando alguma é requisitada. Mas há momentos em que, entre a casa e os ofícios da cidade, entre qualquer compra, por exemplo, na Cobal, e o uso da compra ao chegar em casa, antes de qualquer contrato, de qualquer direito, de qualquer convenção, do livre arbítrio, do estado civil, antes do tamanho dos ossos, do formato da orelha, das impressões digitais dos dedos, das extensões do rosto, da fotografia em 3X4 ou em 5X7, das fotografias de frente e de perfil, antes das imagens exclusivas da íris e das retinas e dos escaneadores 3D, das câmeras que nos gravam nos bancos ou pelas ruas, antes dos DNAs guardados em algum arquivo nacional, antes da beleza e da feiúra, do código de barras na nuca – com o qual sonhei ontem – disponibilizando os corpos a uma máquina que teimasse em reconhecê-los por um número qualquer pelo qual jamais nos reconheceríamos, antes desses e milhares de outros modos de sermos apreendidos, os ócios vazios de um corpo abandonado (uma vida nua ou um posto de pura distração em que os viventes se fazem esquecidos, ou quase isto) sobem e descem uma rua, nada mais. São corpos matáveis, como ao fim de uma partida de futebol, como durante um assalto, como na fila de um hospital, como por bala perdida ou certeira da polícia e dos traficantes, como por acidentes, pelas drogas, pela fome... São corpos gloriosos, como durante uma partida de futebol, como durante uma semana de carnaval, como em um show de rock, em uma mesa de bar com amigos, em um mergulho diurno ou noturno no mar, como quando fazem amor ou quando, mesmo sem o fazerem, se amam ao longo da vida ou por apenas alguns instantes. São corpos dúbios, quando dançam o funk sob a mira dos AR-15, quando fogem dos tiros saltando atleticamente por telhados, caixas d’água, correndo por becos, quando se explodem na terra ou no ar contra o concreto de um edifício ou quando se jogam das alturas do mesmo edifício. São corpos funcionais, como nas caixas lotadas dos supermercados, dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto do sol, dentro da cozinha da minha casa, ao meu ouvido, na central de telemarketing. São corpos... São corpos que, em algum momento, esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua, nada mais. Subindo ou descendo uma rua, atestamos então este hiato de desconhecimento entre o corpo abandonado e as diversas vidas que o tentam colonizar, entre a vida nua e as vestimentas vivas que a recobrem, entre a vida crua e o que dela pode ser cozido, entre a vida aberta e a vida vivida. Atestamos a fenda deste hiato, uns emigrantes da distância neste hiato de que não podemos nos afastar, uns estrangeiros, uns viajantes, uns forasteiros, uns gringos, uns bárbaros neste espaço que se serve das palavras para falar em uma língua estrangeira, uns índios neste espaço, nesta picada, nesta clareira, uns berberes e o vão do deserto esgarçando os berberes, uns esquimós e o vazio da neve ampliando os esquimós, uns pescadores dispersos pela luz, tragados por este espaço diluído entre a areia e os sóis dos Lençóis, o espaço em que o explosivo queima entre a genitália e a cueca do nigeriano no avião. Atestamos este espaço das palavras que se servem das palavras para falar. Apátridas, não temos por pátria a língua portuguesa nem outra nos seria natural. Nascemos sem língua, abertos a qualquer jargão que em nós quisesse se desdobrar, nascemos sem povo, abertos a qualquer bando que em nós quisesse se desdobrar, nascemos sem lei, uns bandidos, uns canhotos, uns lobisomens, uns burros, uns jumentos, umas vacas, umas piranhas, uns veados, umas éguas, umas antas, uns porcos, umas mulas, umas bestas, umas baleias, umas cachorras, uns tubarões, uns animais, uns bichos, umas bichas, umas feras, uns selvagens, uns fora-da-lei abandonados a qualquer lei que nos pudesse governar, abandonados a qualquer lei que tivéssemos de desregrar. Sobreviventes, descendemos de uma classe de épocas perigosas praticamente esquecidas, exilada da cidade dentro da cidade, e, mesmo que ser, estar, saudade, cidade, floresta, rio, mar, sertão, natureza e outras palavras nos digam intimamente respeito, navegamos, apátridas, a abertura, o sem, o não, o nem, o a- que não nos largam. Por mais que não queiram, trazemos conosco os espaços vazios a distorcerem as possibilidades que cotidianamente se oferecem do que nós somos, do que é a água do rio, do mar, da cidade, do país, do mundo, e, por mais que não queiram, nossa saliva é o suor das palavras não-ditas, e, por mais que não queiram, misturamos o separado, trazemos conosco a cidade e a natureza ferina, a poesia do dedo que falta na mão do presidente.
alberto pucheu
Escrito por Caio Carmacho às 20h36
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